Assessora de Guedes comemora mortes de idosos por coronavírus: “Reduzirá nosso déficit previdenciário”

(Reuters) – Em meados de março, o governo brasileiro tomou medidas que pareciam um ataque poderoso e antecipado contra a pandemia de coronavírus.

O Ministério da Saúde determinou que os cruzeiros fossem cancelados. Aconselhou as autoridades locais a descartarem eventos de grande escala. E orientou os viajantes que chegavam do exterior a ficarem isolados por uma semana. Embora o país ainda não tivesse relatado uma única morte por Covid-19, as autoridades de saúde pública pareciam estar saindo na frente do vírus. Elas agiram em 13 de março, apenas dois dias após a Organização Mundial da Saúde (OMS) chamar a doença de pandemia.

Menos de 24 horas depois, o ministério atenuou suas próprias orientações, citando “críticas e sugestões” recebidas das autoridades locais.

No entanto, quatro pessoas familiarizadas com a questão disseram à Reuters que a mudança ocorreu após intervenção do ministro-chefe da Casa Civil, Walter Souza Braga Netto.

“Essa correção se deu por pressão”, afirmou Julio Croda, epidemiologista que era chefe do departamento de imunização e doenças transmissíveis do Ministério da Saúde. A intervenção de Braga Netto não havia sido relatada anteriormente.

A mudança de postura, que não chamou muita atenção na época, marcou um ponto de virada no tratamento da crise pelo governo federal, segundo as quatro fontes. Nos bastidores, disseram elas, o poder estava mudando do Ministério da Saúde, tradicional líder em questões de saúde pública, para o gabinete de Braga Netto, general do Exército.

O Brasil perdeu dois ministros da Saúde nas últimas seis semanas —um foi demitido (Luiz Henrique Mandetta) e o outro pediu demissão (Nelson Teich)— depois de discordarem publicamente de Bolsonaro sobre a melhor forma de combater o vírus. O ministro interino agora é outro general do Exército, Eduardo Pazuello.

As revisões destacaram o fortalecimento da visão de Bolsonaro de que manter a economia brasileira em funcionamento era fundamental, disseram as fontes. Bolsonaro nunca vacilou nessa postura formulada durante alguns dias cruciais em meados de março, apesar das críticas nacionais e internacionais ao tratamento da crise e do aumento no número de mortos.

O Brasil tem agora o segundo maior número de infecções no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, com mais de 374.000 casos confirmados. Mais de 23.000 brasileiros morreram de Covid-19.

“E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê?”, disse Bolsonaro recentemente quando perguntado por repórteres sobre as crescentes mortes no país.

A Casa Civil informou que as mudanças nas diretrizes de 13 de março foram feitas pelo Ministério da Saúde, após contribuições de Estados e municípios.

O Ministério da Saúde disse que houve uma divergência de opiniões devido a diferentes situações nos Estados e cidades em todo o país. Acrescentou que a implementação de medidas de distanciamento social era de responsabilidade das autoridades locais de saúde.

“A estratégia da resposta brasileira à Covid-19 não foi prejudicada em nenhum momento”, afirmou o ministério.

O gabinete de Bolsonaro se recusou a fazer comentários para esta reportagem. A Reuters entrevistou mais de duas dezenas de autoridades atuais e antigas do governo, especialistas em medicina, representantes do setor de saúde e médicos para mostrar a imagem mais completa das falhas do Brasil em conter o surto de coronavírus no país

Elas descreveram uma resposta que começou de maneira promissora, mas que logo foi atrapalhada pelos confrontos do presidente com o Ministério da Saúde e outras autoridades, que não conseguiram convencê-lo de que o destino econômico dependia da eficácia com que o país lidava com a emergência de saúde pública.

Especialistas em saúde foram afastados, segundo as fontes, e Bolsonaro adotou um remédio sem eficácia comprovada —a cloroquina— para tratar infecções por Covid-19. A coordenação federal naufragou. Governadores —alguns dos quais Bolsonaro considera rivais na reeleição— ficaram isolados para definir suas próprias políticas de distanciamento e garantir grande parte de seus testes e equipamentos, disseram as pessoas ouvidas.

Alguns especialistas afirmaram que os tropeços no país são ainda mais chocantes por causa de seu sucesso anterior com malária, zika e HIV.

“Uma coisa que vinha brilhando no Brasil é o sistema de saúde pública”, disse Albert Ko, professor da Escola de Saúde Pública de Yale, com décadas de experiência no Brasil. “Ver tudo se desintegrar tão rapidamente é muito triste.”

“GELADEIRA VAZIA”

Quando o primeiro caso de coronavírus no Brasil foi confirmado, em 26 de fevereiro, o Ministério da Saúde estava se preparando há quase dois meses.

A equipe da pasta estava executando modelos para estimar quando e como implementar as determinações para ficar em casa, em colaboração com autoridades estaduais e municipais, disseram as fontes. O ministério era o centro de comando de um comitê de emergência coordenando a resposta federal em várias agências.

A dimensão continental do Brasil, os problemas nos hospitais públicos e a pobreza eram vulnerabilidades. Mas o país possui importantes cientistas e um setor de saúde privado competente, e teve semanas de aviso prévio, já que o vírus atingiu países como China e Itália primeiro. Os representantes da linha de frente achavam que o Brasil estava em boa posição para responder ao surto.

Mas as pessoas que conversaram com a Reuters disseram que as coisas começaram a desmoronar em duas frentes principais: a oposição de Bolsonaro às medidas de isolamento apoiadas pelo Ministério da Saúde e a incapacidade do governo de ampliar os testes rapidamente.

Integrantes do governo tentaram várias vezes convencer Bolsonaro a endossar um isolamento nacional, de acordo com uma pessoa com conhecimento direto das discussões. Bolsonaro se recusou, disse a fonte, acreditando que o vírus passaria logo e que as autoridades de saúde estavam exagerando sobre a necessidade de distanciamento social que se mostrou eficaz em outras partes do mundo.

“A massa não tem como ficar em casa, porque a geladeira está vazia”, ​​disse Bolsonaro no dia 20 de abril em frente ao Palácio da Alvorada.

O gabinete de Bolsonaro se recusou a comentar por que ele priorizou a economia. Mas o presidente enfrentou pressão para fazê-lo. Membros de sua base de apoio protestaram em algumas cidades contra o isolamento, que ameaçava sua promessa de retomar o crescimento econômico.

Os assessores econômicos de Bolsonaro, no entanto, parecem ter demorado para entender a escala da crise. O ministro da Economia, Paulo Guedes, defensor do livre mercado, disse em meados de março à CNN Brasil que a economia do país em 2020 poderia “crescer 2% ou 2,5% com a queda no mundo” por causa do coronavírus.

Essa previsão estava longe de ser acertada. A atividade industrial entrou em colapso, o desemprego está aumentando e o real caiu cerca de 30% em relação ao dólar este ano. Em 15 de maio, o Barclays reduziu previsão do PIB brasileiro em 2020 de -3,0% para -5,7%, ao citar política “ineficaz” do Brasil para lidar com a pandemia.

O Ministério da Economia agora projeta que o PIB contrairá 4,7% este ano. Em um comunicado enviado por email, disse que suas previsões evoluíram de acordo com a gravidade da situação.

Guedes rejeitou pedido para comentar sua previsão anterior.

Solange Vieira, aliada de Guedes que esteve envolvida na importante reforma previdenciária do governo no ano passado, também mostrou pouca urgência quando foi apresentada a previsões do Ministério da Saúde em meados de março, de acordo com o epidemiologista Croda. O ministério previu mortes generalizadas entre os idosos, se o vírus não fosse contido.

Segundo Croda, ela afirmou: “É bom que as mortes se concentrem entre os idosos… Isso melhorará nosso desempenho econômico, pois reduzirá nosso déficit previdenciário.”

O relato de Croda foi corroborado por outra autoridade, que, falando sob condição de anonimato, contou que recebeu informação do ocorrido, mas não estava na reunião.

Solange Vieira não respondeu a uma mensagem no LinkedIn. A Superintendência de Seguros Privados, que ela lidera, disse em resposta a perguntas sobre seus comentários que ela participou da reunião de meados de março a convite do então ministro da Saúde Mandetta para entender as projeções do ministério.

Ela observou os impactos de vários cenários “sempre com foco na preservação de vidas”, informou, em nota.

PRESSÃO DE CIMA

Por alguns dias em março, parecia que as consequências de uma viagem à Flórida para encontro com o presidente dos EUA, Donald Trump, poderiam ter alterado o pensamento de Bolsonaro sobre o coronavírus.

Logo após o retorno da visita, em 12 de março, o secretário de Comunicação da Presidência teve teste positivo para Covid-19. Nos dias seguintes, cerca de duas dezenas de autoridades que fizeram a viagem teriam resultados positivos, provocando temores de que Bolsonaro e Trump pudessem estar infectados.

Depois de passar por um teste de coronavírus em 12 de março, Bolsonaro pediu aos seus apoiadores para suspenderem protestos planejados para 15 de março por medo de agravar a disseminação. No dia seguinte, ele disse que seu teste foi negativo. Enquanto isso, o Ministério da Saúde anunciava recomendações iniciais de distanciamento social em uma conferência de imprensa na capital.

E então as coisas mudaram.

Logo após a publicação das novas diretrizes, em 13 de março, Croda disse que recebeu uma ligação de seu ex-chefe, o secretário de Vigilância em Saúde Wanderson Oliveira, que afirmou que estava “sob muita pressão da Casa Civil e que tinha que mudar o comunicado” publicado pelo ministério descrevendo as medidas. Segundo Croda, Oliveira não disse especificamente quem na Casa Civil exigiu que as diretrizes fossem enfraquecidas.

Em 24 horas, o ministério havia alterado as recomendações em seu site. Removeu as orientações sobre auto-quarentena para viajantes e o cancelamento de cruzeiros, dizendo que essas medidas estavam “em revisão”. E revisou o cancelamento de grandes eventos para aplicá-lo apenas em áreas com transmissão local.

Oliveira não respondeu aos pedidos de comentário. Ele saiu nesta semana do Ministério da Saúde.

Em 15 de março, Bolsonaro ignorou seu próprio pronunciamento de três dias antes que desencorajava protestos e se reuniu com apoiadores do lado de fora do Palácio do Planalto. Com camisa da seleção brasileira, cumprimentou pessoas e posou para selfies.

“Foi a primeira vez que vimos essa postura totalmente diferente”, disse o então ministro Mandetta à Reuters em entrevista depois que deixou o cargo.

No dia seguinte, em 16 de março, Bolsonaro formalizou a conduta ao tirar poder do Ministério da Saúde e criar um “gabinete de crise” intergovernamental liderado por Braga Netto. O Brasil registrou sua primeira morte por coronavírus em 17 de março.

Em resposta a perguntas da Reuters, o gabinete de Braga Netto disse que o grupo foi formado porque a pandemia “transcendeu” a saúde pública.

Três pessoas familiarizadas com a situação disseram à Reuters que o novo gabinete substituiu efetivamente o grupo que já havia sido criado dentro do Ministério da Saúde. A grande diferença, segundo eles, é que Braga Netto agora tinha a palavra final, em vez de especialistas em saúde pública, e que as preocupações econômicas ganharam mais peso.

O Ministério da Saúde disse que não comentaria questões econômicas, e que a resposta ao coronavírus atravessou os departamentos governamentais.

Croda saiu logo após a criação do novo centro de comando. Ele disse à Reuters que não queria ser responsabilizado por “mortes elevadas”.

Nas semanas que se seguiram, as diferenças políticas entre Bolsonaro e Mandetta foram escancaradas. Mandetta continuou defendendo que a população ficasse em casa, desafiando o presidente. Ele também pediu cautela sobre o medicamento cloroquina. Bolsonaro, seguindo a liderança de Trump, promovia cada vez mais a droga como uma possível cura da Covid-19, apesar da falta de evidências de sua eficácia.

A popularidade de Mandetta aumentou a tensão. Uma pesquisa realizada no início de abril pelo Datafolha mostrou que o Ministério da Saúde sob sua liderança tinha um índice de aprovação de 76%, mais do que o dobro de Bolsonaro.

Em 16 de abril, após dias de especulações, Bolsonaro demitiu Mandetta. Ele o substituiu por Nelson Teich, um respeitado oncologista e empresário da área da saúde, sem experiência em administração na saúde pública.

Duas fontes recém-saídas do Ministério da Saúde disseram que a última quinzena de abril foi perdida enquanto Teich “tomava pé” da situação. As decisões sobre testes e novos equipamentos foram adiadas, afirmaram. Mais de 15 especialistas em saúde pública, incluindo epidemiologistas experientes, saíram com Mandetta, segundo uma das fontes. Muitos foram substituídos por militares.

“Essas mudanças afetam muito a capacidade, a velocidade e a qualidade da resposta”, disse José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde que liderou a reação do Brasil à crise da epidemia de gripe suína em 2009. “Foi uma decisão desastrosa.”

O Ministério da Saúde negou que sua resposta tenha sido prejudicada pelas mudanças.

Em 15 de maio, Teich pediu demissão após menos de um mês no cargo. Bolsonaro o criticou por ter sido muito tímido em promover a reabertura da economia brasileira e o uso de cloroquina.

Teich não respondeu a um pedido de comentário.

Em entrevista à GloboNews no domingo, Teich disse que o desejo de Bolsonaro de uma rápida expansão do uso de cloroquina teve peso em sua decisão de deixar o cargo.

A saída de Teich acelerou a influência militar dentro do Ministério da Saúde. Eduardo Pazuello, general do Exército em atividade e sem formação médica, é agora ministro interino da Saúde. Das oito pessoas no topo do ministério, apenas uma tinha origem militar em março. Agora três delas têm. Pelo menos 13 militares também foram nomeados para cargos no ministério.

Dias após a demissão de Teich, o ministério abriu caminho para o amplo uso da cloroquina no tratamento de pacientes com casos leves de Covid-19.

As Forças Armadas geralmente ajudam na logística durante emergências. Mas Wildo Araújo, um ex-funcionário do Ministério da Saúde que foi coautor de um dos primeiros grandes estudos de Covid-19 do país, disse que o pessoal militar está sendo colocado em funções inadequadas.

“Tenho o maior respeito pelas Forças Armadas, mas tenho pena dos que estão entrando agora porque não têm ideia do que fazer”, disse ele. “Eles não sabem como lidar com o sistema público de saúde brasileiro”.

O Exército se recusou a comentar, encaminhando perguntas ao Ministério da Saúde, que também não quis comentar o papel dos militares.

MENOS TESTES

A oposição de Bolsonaro ao distanciamento social e a recusa em apoiar as autoridades locais em suas tentativas de impor isolamento contribuíram para minar o cumprimento dessas medidas, disseram especialistas.

Uma análise da Reuters dos dados de mobilidade do Google, que reúne a movimentação dos telefones celulares e os compara a um referencial pré-pandemia, mostrou uma redução muito menor de pessoas que entram e saem de centros de trânsito e locais de trabalho no Brasil do que em países europeus como Itália, França e Reino Unido, onde medidas de confinamento foram eficazes.

A Reuters também verificou que a redução de mobilidade no Brasil era menor do que a de outros países em desenvolvimento, como Argentina, Índia e África do Sul. A Reuters analisou dados de 17 países da África, Europa, América Latina e Ásia para o mês de abril.

Como outros países, incluindo Estados Unidos, o Brasil também teve dificuldades para garantir os testes para Covid-19. É uma grande deficiência, dizem alguns epidemiologistas, o que tornou mais difícil rastrear e controlar o vírus no Brasil.

A escassez de testes deve-se em parte ao excesso de dependência do Ministério da Saúde a uma instituição.

De acordo com documento interno do Ministério da Saúde visto pela Reuters, a pasta começou a comprar kits de testes de diagnóstico da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) entre janeiro e fevereiro.

Em 7 de abril, no entanto, a Fiocruz entregou apenas 104.872 —ou 3,5%— dos cerca de 3 milhões de kits que o ministério havia encomendado, segundo o documento. Croda e outros disseram que a Fiocruz tinha dificuldade para adquirir reagentes cruciais no mercado internacional. Fontes do setor afirmaram que anos de cortes no orçamento também podem ter influenciado.

O Ministério da Saúde deveria ter estabelecido uma ampla rede de laboratórios públicos e privados, disse uma fonte, o que melhoraria a capacidade de adquirir reagentes e realizar os testes.

Em comunicado, a Fiocruz afirmou ter cumprido todas as suas obrigações perante o Ministério da Saúde.

A fundação disse que superou a meta inicial de 220.000 testes em 13 de abril e entregou quase 1,3 milhão de testes na última semana daquele mês. Afirmou ainda que espera entregar 11,7 milhões de testes até setembro.

“A competição mundial por esse tipo de teste foi muito grande”, declarou a Fiocruz, “o que causou uma escassez de produtos”.

A burocracia também prejudicou o Brasil. Um lote de 500.000 testes de anticorpos, usado para determinar quem teve o vírus, ficou retido no aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, por 9 dias, enquanto o órgão regulador da saúde processava uma exceção para serem distribuídos sem rótulos em português, disseram à Reuters duas pessoas com conhecimento da situação.

O Ministério da Saúde se recusou a comentar o incidente. Disse que aumentou a capacidade de teste e realizará 46,2 milhões de testes, sem especificar um prazo. “A iniciativa faz parte dos esforços para encontrar novas compras no mercado nacional e internacional”, afirmou.

Em 12 de maio, no entanto, o Brasil havia processado apenas 482.743 testes. Dos 10 países com maior número de mortes por Covid-19, apenas a Holanda havia testado menos pessoas do que o Brasil — um país 12 vezes menor do que a população brasileira.

(Reportagem adicional de Ricardo Brito, Pedro Fonseca, Marcela Ayres e Lisandra Paraguassu)