A ex-deputada federal e pastora Flordelis dos Santos de Souza começará a ser julgada nesta segunda-feira. Ela é acusada de ter ordenado o assassinato do marido, o pastor Anderson do Carmo, morto a tiros na garagem da casa da família, em Niterói, em junho de 2019. Além de Flordelis, serão julgados ainda três filhos e uma neta dela, todos acusados de participação no crime.
As investigações que levaram o grupo ao banco dos réus acabaram por revelar a face oculta da família, que se tornou conhecida por reunir 55 filhos, entre biológicos, adotados e afetivos e por comandar a igreja Ministério de Flordelis, que no auge chegou a ter cerca de 5 mil fiéis. O trabalho dos investigadores e também depoimentos de testemunhas e envolvidos trouxe à tona uma rotina de brigas por dinheiro, relacionamento entre irmãos, suspeita de envenenamento e até a realização de rituais de purificação com sexo.
Relembre algumas das histórias levantadas durante o inquérito:
Relacionamento entre irmãos
Uma das filhas adotivas de Flordelis, Erica dos Santos de Souza, em seu depoimento, foi questionada pelos policiais da Delegacia de Homicídios de Niterói e São Gonçalo se havia presenciado envolvimento entre as pessoas que moram na casa. Ela relatou que Adriano dos Santos, filho biológico apenas de Flordelis, se relacionou amorosamente com duas irmãs adotivas – Nylaine e Lorrana, quando já namorava a sua esposa.
Erica contou ainda que Simone dos Santos, também filha biológica apenas de Flordelis, se envolveu com Alexandre Freire, que é filho adotivo. No depoimento dado à polícia, ela contou que dois irmãos adotivos – Iago e Francine – se envolveram, mas saíram da casa para assumir o relacionamento, “porque Anderson e Flordelis não permitiam esse comportamento dentro de casa”. Além dos relacionamentos citados nos depoimentos, pelo menos outros dois casais já se formaram na família de Flordelis. Os pastores Carlos Ubiraci e Cristiane – ambos filhos adotivos de Flordelis – são casados.
Denúncia de abusos
Duas netas e uma filha da ex-deputada afirmaram ter sido vítimas do pastor Anderson do Carmo. Em entrevista exclusiva ao GLOBO, em maio deste ano, elas revelaram detalhes dos episódios. Uma delas disse ter sido estuprada por Anderson há cerca de cinco anos, quando ainda era menor de idade, enquanto dormia na casa da família em Niterói. A jovem relata que acordou com o avô tocando suas partes íntimas, e afirma que ele introduziu o dedo em sua vagina. Rafaela diz que, por ter o sono muito pesado, não sabe ao certo tudo o que Anderson fez. Segundo outra neta, Anderson colocava a mão em sua perna quando ela andava de carro com o avô, fazia elogios que a constrangiam.
— Ele (Anderson) colocava a mão na minha lombar, perto da minha bunda, e dizia que eu era branquinha linda. Também colocava a mão na minha perna quando estávamos indo para a igreja. Um domingo entrei no quarto dele, e ele estava se masturbando. O banheiro de cima não tinha água, só no dele. E entrei no banheiro dele para tomar banho. Quando saí, ele estava se masturbando e me chamando de minha branquinha – disse.
Uma testemunha contou que após uma adolescente ter recém-chegado na casa da pastora, Anderson pediu a Flordelis autorização para se relacionar sexualmente com a jovem. “Diz que Flordelis autorizou e de fato ocorreu por vezes. No entanto, a jovem não gostava dessa situação, mas obedecia ao que era determinado por Flordelis”, diz trecho do depoimento. Flordelis também receberia pastores estrangeiros em sua casa e uma das filhas chegou a ser oferecida sexualmente para eles.
No julgamento que começa nesta segunda a defesa de Flordelis levará ao plenário acusações de violências físicas e sexuais que teriam sido cometidas por Anderson, o que pode dar a tônica do julgamento, que se estenderá por mais de um dia. Em vídeo obtido pelo GLOBO, feito na última semana na penitenciária Talavera Bruce, no Complexo de Gericinó, Flordelis detalha a seus advogados episódios nos quais acusa o pastor de forçar relações sexuais. Os advogados da família do pastor, porém, que são refutam as acusações.
Suspeita de frequentar casa de swing
O depoimento de uma testemunha aos investigadores da DH revelou que Flordelis e Anderson, além de dois filhos do casal, seriam frequentadores de uma casa de swing na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio. A mulher, que pertencia à igreja do casal, afirmou que soube da informação em 2007, ao levar sua supervisora a um culto no Ministério Flordelis. Ela relatou à polícia que ao ver a ex-deputada e pastora, sua amiga ficou surpresa e comentou que Flordelis frequentava a mesma casa de swing que ela onde possuiria até um quarto privativo no local. A mulher chegou a descrever a roupa usada por Flordelis na ocasião em que a viu na casa de swing e afirmou que ela estava extremamente bêbada.
Rituais de purificação com sexo
Uma testemunha que morou na casa durante cinco anos, no fim dos anos 90, afirmou considerar que participava de uma verdadeira seita e revelou que chegou a manter relações sexuais com Flordelis. A pessoa contou aos investigadores da Delegacia de Homicídios de Niterói e São Gonçalo que ao chegar na casa teve que fazer um “ritual de purificação”, sendo obrigado a ficar isolado em um quarto durante sete dias. Nesse período, tinha que vestir roupas brancas e alimentava-se apenas de arroz e legumes.
Até que um dia, Flordelis teria ido sozinha ao quarto onde ele estava e eles fizeram sexo. Segundo o homem, depois daquele dia, ele e a deputada transaram outras vezes. “O declarante se recorda que aquilo lhe causou um efeito como se fosse mágico, pois considerava que havia tido relações praticamente com um ser divino, pois era assim que Flordelis se apresentava”, diz trecho do depoimento.
Aos policiais o homem também disse que em uma ocasião o pastor Anderson ficou pelado, no centro de um círculo feito a giz. Flordelis então iniciou uma espécie de reza ou mantra, no qual oferecia Anderson como oferenda.
Brigas por dinheiro
Na denúncia contra dois filhos de Flordelis – Lucas e Flávio –, o Ministério Público afirma que uma das motivações para o crime foi o “descontentamento com a forma como a vítima controlava as finanças” da casa. Em depoimento, Flávio afirmou desconfiar que Anderson estava dando “volta financeira” na mãe. Outro filho do casal, Misael também deu um depoimento no mesmo sentido e afirmou que a mãe estava descontente com a questão financeira e desconfiava que estaria sendo enganada e lesada por Anderson. Em entrevista, a pastora negou que houvesse desavença por causa de dinheiro: “Briga por dinheiro, não. Por outros detalhes, sim”, disse.
Tratamento desigual entre os filhos
O inquérito sobre a morte do pastor Anderson do Carmo revelou uma rotina muito diferente da imagem de família perfeita que o casal tentava propagar. Quatro filhos adotivos de Flordelis — Luan Santos, Roberta Santos, Kelly dos Santos e Daiane Freires — contaram que os filhos adotivos não eram tratados da mesma forma que os biológicos. Segundo Luan, nem todos os filhos “tinham as mesmas regalias”. Ele apontou Simone dos Santos, filha biológica só de Flordelis, como uma das que mais tinham privilégios. Luan disse que, enquanto havia uma geladeira “pública” para todos da casa, Simone, além de Flordelis e Anderson, desfrutava de despensa separada em seus quartos.
Roberta afirmou, em seu depoimento, que as regras da casa não precisavam ser seguidas por todos. De acordo com ela, os filhos biológicos de Flordelis eram os mais passeavam e ganhavam roupas da mãe. A jovem ressaltou que Anderson, no entanto, era um “paizão e sempre tratou todos os filhos muito bem”. Kelly também contou que Flordelis sempre “tratou os filhos adotivos de modo diferenciado em relação aos biológicos”. Ela observou que os filhos biológicos ganhavam sempre os melhores presentes e os adotivos, quando ganhavam, era algo de qualidade inferior ou usado.
Suspeita de envenenamento
Segundo a investigação, as tentativas de envenenamento do pastor Anderson do Carmo teriam começado após Flordelis assumir a cadeira de deputada federal. DE acordo com o promotor Sérgio Luiz Lopes Pereira, do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), nessa época ela se sentiu mais confiante para realizar o assassinato. O envenenamento realizado de forma gradual mediante a adição de arsênico na comida do pastor, que teve várias passagens registradas em hospitais de Niterói, sempre com os mesmos sintomas: diarreia, vômitos e sudorese.
O promotor informou ainda que houve por parte da família pesquisas na internet sobre cianeto, outro veneno, depois que o uso de arsênico não trouxe o resultado esperado. Ainda durante a investigação, policiais da Delegacia de Homicídios de Niterói, São Gonçalo e Itaboraí questionaram Simone dos Santos Rodrigues, filha biológica de Flordelis, sobre o motivo de ela ter feito buscas sobre informações a respeito de “cianeto” e “cianeto nos alimentos”. Simone disse à época que tinha costume de ver séries investigativas e por ter ficado curiosa resolveu pesquisar sobre cianeto. Ela afirmou ainda ter feito a pesquisa para ajudar uma amiga que tem cachorro com tumor.
O Globo