Basta ter olhos para ver o aumento avassalador de pessoas vivendo nas ruas das grandes cidades brasileiras desde o começo da pandemia. Porém, ser vista não basta para que essa população seja lembrada e incluída em políticas públicas – ela precisa ser contada, mas não é.
Excluídos do Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os brasileiros que vivem em situação de rua tendem a permanecer invisíveis nas estatísticas oficiais do país pelos próximos dez anos, quando nova operação censitária deverá ser realizada no país.
“O Censo Demográfico coleta as informações da população domiciliada. Então, é necessário que a pessoa tenha um domicílio como local de moradia permanente para que ela seja recenseada. Aquelas pessoas que moram fora de domicílio, moram na rua efetivamente, elas não serão recenseadas”, esclareceu o gerente técnico do Censo, Luciano Duarte.
Precariedade recenseada
Duarte ressalvou que “mesmo as pessoas que moram em situação de precariedade extrema, em alguma estrutura domiciliar muito inadequada, serão recenseadas”.
O gerente do Censo afirmou ao g1 que “pessoas que vivem em barracas, trailers, dentro de carro, em qualquer estrutura que ela tenha como local de moradia permanente o seu domicílio, elas serão recenseadas, basta que esse domicílio seja considerado como uma estrutura, ainda que inadequada, com teto, com parede. Então, mesmo que seja de forma muito rudimentar o domicílio, estas pessoas serão recenseadas”.
Todavia, ao ser questionado se barracas, trailers e carros podem ser consideradas moradias permanentes mesmo que não estejam localizados em logradouros fixos, Duarte afirmou que “esses exemplos não constituem moradias permanente em hipótese alguma, estando ou não localizadas em um endereço fixo”.
“As barracas de lona, plástico ou tecido são consideradas domicílios improvisados em qualquer circunstância, exceto se utilizadas como estruturas para abrigamento institucional – caso dos abrigos de refugiados de Roraima”, disse.
Ele acrescentou que “a classificação dessas moradias, assim como de todos os demais tipos e espécies de domicílios é realizada em campo pelo recenseador a partir do treinamento recebido e com o apoio conceitual dos supervisores, quando necessário”.
Questionado sobre a contradição, o IBGE não se pronunciou.
Retrocesso legislativo
Em dezembro de 2009, ano de véspera da realização do último Censo, um decreto presidencial instituindo a Política Nacional para a População em Situação de Rua recomendava a contagem da população de rua pelo IBGE.
Passados dez anos, porém, um novo decreto, dessa vez editado pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e assinado pela vice-presidência da República, revogou não só a referida recomendação, como também instituição do Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento da Política Nacional para a População em Situação de Rua.
Sem domicílio e sem políticas públicas
De acordo com o vice-coordenador nacional da Pastoral do Povo de Rua, Padre Marcos Augusto Brito Mendes, a contagem populacional é indispensável para se pensar e estabelecer políticas públicas eficazes para o atendimento às necessidades de todos os habitantes do país.
“A Pastoral do Povo de Rua vem há muito tempo insistindo para que o Censo não fique baseado no conceito domiciliar, porque ele exclui a população em situação de rua. Sem uma contagem, fica impossível pensar o desenvolvimento de políticas públicas para essa população”, enfatizou Padre Marcos.
É por meio de políticas públicas que o estado pode atuar na garantia da reprodução da vida material à população, ou seja, viabilizar o acesso de todo cidadão aos direitos básicos de moradia, alimentação, educação e saúde.
“As políticas públicas podem contribuir assim com a redistribuição da renda, ampliação dos direitos dos cidadãos e democratização da sociedade”, destacou o Movimento Nacional de População em Situação de Rua.
Centenas de milhares
A estimativa oficial mais recente indica que havia, em fevereiro deste ano, cerca de 161,8 mil famílias vivendo em situação de rua no país. Esse é o número de famílias nessa situação inscritas no Cadastro Único do governo federal e, segundo a própria Secretaria Especial do Desenvolvimento Social, vinculada ao Ministério da Cidadania, não representa o tamanho real da população em situação de rua no país.
“Os dados são coletados pelos municípios, a partir da autodeclaração do responsável familiar, e inseridos no sistema, o que não representa a totalidade de famílias em situação de rua na cidade”, informou a pasta.
A única contagem oficial da população que vive nas ruas do país foi feita em 2009 pelo então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome – mas também não retratava a real dimensão desse fenômeno social no país. Batizada Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, ela apontou 31.992 mil pessoas maiores de 18 anos vivendo nas ruas.
O levantamento foi feito em 71 cidades, sendo 48 municípios com mais de 300 mil habitantes e 23 capitais, das quais São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Porto Alegre foram excluídas.
Embora não tenha dado um retrato fiel da população em situação de rua no país, a pesquisa foi pioneira ao apontar o perfil de quem vive nesta condição. Contrariando o senso comum, por exemplo, ela indicou que 70,9% da população de rua exercia atividade remunerada e 58,6% afirmaram ter uma profissão.
Crescimento expressivo e mudança drástica no perfil
De acordo com Padre Marcos, da Pastoral do Povo de Rua, a despeito da ausência de estatísticas oficiais, é incontestável o crescimento expressivo da população em situação de rua desde o começo da pandemia. Tão relevante quanto o aumento, segundo o pároco, foi a mudança do perfil de quem vive nas ruas do país.
“Os grupos que trabalham com as pessoas que vivem em situação de rua comentam assustados não só o crescimento dessa população como a drástica mudança do perfil dessas pessoas. Com o início da pandemia, as pessoas começaram a perder a suas moradias e a população de rua tem um incremento absurdo não só de adultos, mas de famílias inteiras, incluindo crianças e adolescentes”, disse Padre Marcos.
Diante do fenômeno, a Pastoral deu início, ainda em 2020, ao movimento Despejo Zero, numa tentativa de frear o aumento da população vivendo nas ruas do país.
“Muitas famílias foram para as ruas porque, sem renda, eram despejadas por falta do pagamento de aluguel. Quando iniciamos a campanha, houve esse freio esperado. Mas as famílias que já haviam sido despejadas continuaram nas ruas. Por falta de políticas públicas, não houve movimento reverso, ou seja, de volta ao lar”, enfatizou.
Um levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) a partir de informações das prefeituras de cerca de 2 mil municípios (menos da metade do total de cidades brasileiras, portanto) mostrou que, entre 2020 e 2022, aumentou em mais de 30% o número de pessoas vivendo nas ruas do país.
Segundo este estudo do Ipea, divulgado no dia 8 de dezembro, o Brasil chegou ao final de 2022 com uma população de rua estimada em 281.472 pessoas, mais que o triplo do estimado em 2012, que era de 90.480 – crescimento de 211% em uma década.
Na mesma década, a população brasileira total aumentou apenas 11%, quase um terço do crescimento estimado da população em situação de rua no país.
“O crescimento da população em situação de rua se dá em ordem de magnitude superior ao crescimento vegetativo da população. Além disso, tal crescimento se acelerou nos últimos anos”, enfatizou o Ipea.
g1 – Rio de Janeiro