RIO — Um homem de 57 anos com doença cardíaca e passando por risco de morte recebeu um coração de um porco geneticamente modificado, no que foi um procedimento inovador que oferece esperança a centenas de milhares de pacientes com órgãos deficientes. Segundo o “New York Times”, este foi o primeiro transplante bem-sucedido de coração de porco em um ser humano. A operação de oito horas ocorreu em Baltimore na sexta-feira, e o paciente, David Bennett, passa bem nesta segunda-feira, informaram cirurgiões do Centro Médico da Universidade de Maryland.
— Está funcionando e parece normal. Estamos emocionados, mas não sabemos o que o amanhã nos trará. Isso nunca foi feito antes — afirmou ao jornal americano o médico Bartley Griffith, diretor do programa de transplante cardíaco do centro médico, que realizou a operação. — Ele cria o pulso, cria a pressão, é o coração dele.
Cientistas têm trabalhado na criação de porcos cujos órgãos não seriam rejeitados pelo corpo humano, numa pesquisa acelerada na última década por novas tecnologias de edição de genes e clonagem. O transplante de coração ocorreu apenas alguns meses depois que cirurgiões em Nova York anexaram com sucesso o rim de um porco geneticamente modificado a uma pessoa com morte cerebral. Os pesquisadores esperam que estes procedimentos inaugurem uma nova era na medicina, quando os órgãos de substituição não forem mais escassos para os mais de meio milhão de americanos que aguardam rins e outros órgãos.
O coração transplantado para Bennett veio de um porco geneticamente modificado fornecido pela Revivicor, uma empresa de medicina regenerativa com sede em Blacksburg, no estado americano da Virgínia. O animal tinha 10 modificações genéticas, sendo que quatro genes foram eliminados ou inativados, incluindo um que codifica uma molécula que causa uma resposta agressiva de rejeição humana. Um gene de crescimento também foi inativado para evitar que o coração do porco continuasse a crescer depois de implantado, disse o médico Muhammad Mohiuddin, professor da Faculdade de Medicina da Universidade de Maryland. Além disso, seis genes humanos foram inseridos no genoma do porco doador — modificações destinadas a tornar os órgãos suínos mais toleráveis ao sistema imunológico humano.
Médico Bartley Griffith ao lado do paciente David Bennett, que recebeu um coração de porco geneticamente modificado, em transplante inédito Foto: Universidade de Maryland
A equipe usou um novo medicamento experimental desenvolvido em parte por Mohiuddin e fabricado pela Kiniksa Pharmaceuticals para suprimir o sistema imunológico e prevenir a rejeição. Também usou um novo dispositivo de perfusão de máquina para manter o coração do porco preservado até a cirurgia. A Food and Drug Administration (FDA) emitiu uma autorização de emergência para a operação na véspera do réveillon.
— A anatomia era um pouco esquisita, e tivemos alguns momentos de “ops” e tivemos que fazer algumas cirurgias plásticas inteligentes para fazer tudo se encaixar — lembrou Griffith.
Quando a equipe removeu o grampo que restringia o suprimento de sangue ao órgão, “o coração disparou” e “o coração do animal começou a apertar”.
Quando Bennett contou pela primeira vez a seu filho, David Bennett Jr., sobre o transplante, ele mal pôde acreditar. Ele disse que seu pai havia colocado uma válvula de porco há cerca de uma década e achava que poderia estar confuso. Depois de um tempo, porém, Bennett reconheceu que o que estava acontecendo era real.
— Percebi: “Cara, ele está dizendo a verdade e não enlouquecendo. E ele pode ser o primeiro de todos.
Bennett, por sua vez, decidiu apostar no tratamento experimental porque ele teria morrido sem um novo coração, havia esgotado outros tratamentos e estava doente demais para se qualificar para um doador de coração humano, disseram familiares e médicos.
— Era morrer ou fazer esse transplante — disse Bennett antes da cirurgia, de acordo com funcionários do Centro Médico da Universidade de Maryland. — Eu quero viver. Eu sei que é um tiro no escuro, mas é minha última escolha.
Seu prognóstico agora é incerto. Bennett ainda está conectado a uma máquina de bypass coração-pulmão, que o mantinha vivo antes da operação, mas isso não é incomum para um novo receptor de transplante de coração, disseram especialistas. O novo coração está funcionando e já está fazendo a maior parte do trabalho, e seus médicos disseram que ele poderia ser retirado da máquina na terça-feira. O paciente está sendo monitorado de perto por sinais de que seu corpo está rejeitando o novo órgão, mas as primeiras 48 horas, que são críticas, passaram sem incidentes.
Ele também está sendo monitorado para infecções, incluindo retrovírus suíno, um vírus suíno que pode ser transmitido a humanos, embora o risco seja considerado baixo.
David Bennett e seus filhos, David Bennett Jr., e Nicole McCray, em 2014 Foto: Universidade de Maryland
Para o médico David Klassen, diretor médico da United Network for Organ Sharing, que foi cirurgião de transplantes na Universidade de Maryland, essa operação é “um divisor de águas”.
— As portas estão começando a se abrir que levarão, acredito, a grandes mudanças na forma como tratamos a falência de órgãos.
Klassen afirmou ainda, contudo, que há muitos obstáculos a serem superados antes que tal procedimento pudesse ser amplamente aplicado, observando que a rejeição de órgãos ocorre mesmo quando um rim de doador humano compatível é transplantado.
— Eventos como esses podem ser dramatizados na imprensa, e é importante manter a perspectiva — acrescentou Klassen. — Leva muito tempo para amadurecer uma terapia como essa.
O xenotransplante, o processo de enxerto ou transplante de órgãos ou tecidos de animais para humanos, tem uma longa história. Os esforços para usar o sangue e a pele de animais remontam a centenas de anos. Na década de 1960, os rins dos chimpanzés foram transplantados em alguns pacientes humanos, mas o tempo que um receptor viveu foi de nove meses. Em 1983, um coração de babuíno foi transplantado para uma criança conhecida como Baby Fae, mas ela morreu 20 dias depois.
Os porcos oferecem vantagens sobre os primatas para a obtenção de órgãos, porque são mais fáceis de criar e atingem o tamanho humano adulto em seis meses. Válvulas cardíacas de porco são rotineiramente transplantadas para humanos, e alguns pacientes com diabetes receberam células do pâncreas suíno. A pele de porco também tem sido usada como enxerto temporário para pacientes queimados.
Duas tecnologias mais recentes — edição de genes e clonagem — produziram órgãos de porco geneticamente modificados com menos probabilidade de serem rejeitados por humanos. Corações de porco foram transplantados com sucesso em babuínos por Mohiuddin. Mas as preocupações de segurança e o medo de desencadear uma resposta imunológica perigosa que pode ser fatal impediam seu uso em humanos até recentemente.
Nos EUA, há uma escassez aguda de órgãos e cerca de uma dúzia de pessoas nas listas morrem a cada dia. No ano passado, cerca de 41.354 americanos receberam um órgão transplantado, mais da metade deles recebendo rins, de acordo com a United Network for Organ Sharing, uma organização sem fins lucrativos que coordena os esforços de aquisição de órgãos do país. Cerca de 3.817 americanos receberam corações de doadores humanos em 2021 como substitutos, mas a demanda potencial ainda é maior.
O Gloobo