Digo “classes pobres” porque não se trata de operários, ou das pessoas uberizadas, os “por conta própria” da nova economia. Elas são representadas por Regina Casé, a caseira de um ricaço que, pouco depois de dar uma grande festa, é preso junto com a mulher. Este é o primeiro verão, o de 2015.
Ali, já pontifica Regina Casé, como Madá, a caseira da mansão, que de uma hora para outra se vê perdida, às voltas com os demais funcionários, com salários atrasados, questionamentos policiais et cetera.
Casé é o caminho na busca desse público mais amplo, que aderiu com razoável intensidade ao “Que Horas Ela Volta?” de Anna Muylaert, alguns anos atrás. Outros tempos e questões, certamente.
O segundo verão, de 2016, é marcado pela depressão. O negócio que Madá planejava vai para o buraco, envolvido nas tramoias do patrão, e a crise na casa se aprofunda. Começa a surgir um personagem, seu Lira, papel de Rogério Froes, pai do dono da mansão. Antes um mero fantasma que passava por ali com ar meio demente, ele se torna o centro dos cuidados de Madá.
Passamos a saber, com o tempo, que suas divergências com o filho são muitas. Que a uma geração letrada sucedeu na família uma geração argentária. Seu Lira não gosta disso. Se sente mais próximo da caseira do que se sentia da própria família. Ao mesmo tempo, Madá vai adquirindo uma nova percepção sobre os antigos patrões, inclusive sobre o fato de absorver seus valores.
O lugar se torna atração turística e Madá guia excursões de barco —aqui morava o fulano, que está preso, ali morava o sicrano, que fugiu. Maneiras de sobreviver, enfim.
O terceiro verão, de 2018, é o mais complicado, qualquer que seja o ponto de vista. Se acentua a necessidade de viração para manter a casa. A ilha da fantasia de outrora vira ilha da fantasia do presente, quer dizer, se aluga o lugar para filmes publicitários.
Não é um momento feliz para o filme. Poderia ser –a mudança do real em cenário de filmagem, com toda a falsidade que embute (como neve para o Natal) é uma ideia interessante. Mas filmagem é uma das coisas mais chatas do mundo para quem não está envolvido.
É um problema que Sandra Kogut não resolveu bem (Ugo Giorgetti contornou muito bem esse risco em “Sábado”; Kogut opta pela estratégia das repetições e tal, mas nem todo mundo é Abbas Kiarostami).
Transformar a filmagem em lugar de verdade parece uma solução um tanto adventícia. Ali, promovida a atriz, Madá começa a enumerar todas aquelas belezas típicas das peças publicitárias, mas desvia o rumo e passa a falar das durezas de sua triste vida, que até agora haviam sido abafadas pelo otimismo e pela alegria da personagem.
Em todo caso, essa transformação na personagem é uma passagem no tempo –da empregada orgulhosa de “Que Horas Ela Volta?” para a desesperança dos tempos da Lava Jato (o filme precede a Vaza Jato, que deixaria mais claras que o dia certas malandragens da operação).
Ficando por aí, o filme já não daria conta, senão superficialmente, dos complexos acontecimentos político-policiais do período, tangenciando questões que já então emergiam. Como se interrompe em 2017 (o filme é de 2018), a sensação de deslocamento no tempo se torna presente, até demais. A escolha de um final colado à força no filme não ajuda em nada esse quadro de foco impreciso.
Restam a presença de Regina Casé, quase retomando seu papel em “Que Horas Ela Volta?”, e o retorno de Rogério Froes, bem marcante como seu Lira. É muito pouco. É um tanto decepcionante em termos de evolução para quem já fez “Mutum”.