Ícone do site Diário da Paraíba

Irmã Dulce é canonizada pelo Papa e se torna a Santa Dulce dos Pobres

Irmã Dulce, a freira brasileira que dedicou sua vida à caridade, tornou-se Santa Dulce dos Pobres neste domingo (13), numa cerimônia conduzida pelo Papa Francisco, no Vaticano. A cerimônia foi prestigiada por uma comitiva de autoridades brasileiras, encabeçada pelo vice-presidente Hamilton Mourão (PRTB).

O nome da santa brasileira invocou ao menos dois milagres que foram reconhecidos pela Igreja Católica. Em 2001, a sergipana Cláudia Cristina dos Santos pediu a intercessão da religiosa para cessar uma hemorragia depois de 18 horas do parto de seu segundo filho. Foi atendida. Em 2014, o músico baiana José Maurício Moreira recobrou a visão depois de 14 anos de cegueira derivada de um glaucoma, após pedir a intercessão da agora Santa Dulce. Moreira esteve presente à celebração e foi saudado pelo papa Francisco.

Outros quatro religiosos que viveram no século 19 e 20 foram canonizados na mesma celebração: o britânico John Newman, uma italiana, Giuseppina Vannini, uma indiana, Mariam Thresia Chiramel Mankidiyan, e a suíça Margarida Bays.

Irmã Dulce nasceu em Salvador, da Bahia, em 1914, e morreu em 1992. Destacou-se por sua perseverança em prol de projetos dedicados aos mais necessitados, ao mesmo tempo em que se movimentava entre os representantes do poder para conseguir apoio a seu trabalho de caridade.

“Se Irmã Dulce estivesse viva, estaria na Lava Jato”. A brincadeira do ator e comediante baiano Frank Menezes pode soar estranha a quem desconhece que as boas relações e o jogo de cintura com grandes políticos e empresários foram um dos pilares do trabalho social realizado pelo anjo bom da Bahia. Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes, mais conhecida como Dulce dos Pobres.

Ela abraçou a vida religiosa aos 18 anos e a caridade aos 12, quando uma tia levou-a para conhecer a Favela dos Alagados, em Salvador. Foi quando decidiu alimentar os pobres e a ajudar os enfermos na porta de casa. Décadas depois, as doações de poderosos como Norberto Odebrecht (fundador da construtora que sucumbiria com a Lava Jato), de quem foi amiga durante 50 anos, foram embrião das Obras Sociais Irmã Dulce (Osid), que hoje contam com um complexo hospitalar e um orfanato e que beneficiam a mais de três milhões de pessoas anualmente.

Pode-se dizer que o professor de relações públicas da freira proveniente de uma família de classe média (era neta de deputado e filha de dentista) foi o influente e bem relacionado frei alemão Hildebrando Kruthaup (1902-1986), com quem fundou em 1937 o Círculo Operário da Bahia, rede que garantia assistência social aos trabalhadores das fábricas de Salvador e suas famílias.

Krunthap costumava receber doações das senhoras ricas da Bahia. Com ele, Irmã Dulce aprendeu que, além de passar o chapéu entre os pequenos comerciantes da Cidade Baixa, precisaria recorrer a entidades com maior poder econômico e político.

Já é famoso o episódio relatado pelo jornalista baiano Jorge Gauthier no livro-reportagem ‘Irmã Dulce: Os Milagres pela Fé’ em que um lojista cuspiu na palma da mão estendida da freira por recusar seu pedido de doação. A santa Dulce teria, então, estendendo a mão limpa, explicando que a outra palma continuava livre para receber a ajuda aos pobres.

Depois de dez anos atendendo doentes na rua e de ocupar propriedades públicas e privadas para realizar seu trabalho – tendo vivido um jogo de gato e rato com a Prefeitura de Salvador, que a expulsava dos terrenos –, a freira decidiu matar as galinhas do galinheiro de seu convento, tapar as paredes com compensado e instalar estrados e colchões para abrigar 70 doentes.

Para transformar a estrutura improvisada em um hospital, foi atrás dos poderosos. Na fundação do Hospital Santo Antônio, em 1960, as figuras mais importantes foram o então governador baiano Juracy Magalhães (que havia sido interventor na Bahia no começo dos anos de 1930, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas), e Norberto Odebrecht, que enviou engenheiros e operários para construir o local e todas as suas ampliações nas décadas seguintes (em 1970, passou a ter 300 leitos e, em 1983, 800), conforme explica o jornalista Graciliano Rocha, autor da mais recente biografia da primeira santa brasileira (‘Irmã Dulce, a santa dos pobres’).

Odebrecht foi também quem ajudou Irmã Dulce a conseguir um empréstimo no Banco do Brasil para construir um prédio para o Círculo Operário da Bahia. Ambos convenceram o chefe do banco a aceitar uma nota promissória como garantia. No entanto, conforme narra Rocha em seu livro, os papéis não tinham valor.

Apesar disso, a freira saiu e levou o que hoje seria equivalente a cinco milhões de reais. A proximidade com alguns dos grandes nomes do empresariado baiano era tamanha que, ao longo dais seis décadas da Osid, personalidades como Odebrecht e o banqueiro Ângelo Calmon de Sá ocuparam cargos de direção na instituição.

“Na minha pesquisa, não encontrei nenhuma autoridade que tivesse dito ‘não’ para Irmã Dulce”, conta por telefone ao El País o biógrafo da santa, que realizou mais de 100 entrevistas com pessoas que conviveram com ela, além de pesquisas no Brasil, Estados Unidos e Itália, ao longo de oito anos. “Também não encontrei nenhuma ocasião em que ela tenha pedido um favor pessoal para ela ou para a família dela, um emprego para parente, nada disso”, diz Rocha.

Inclusive com Antônio Carlos Magalhães (ACM), que foi prefeito de Salvador e três vezes governador da Bahia, Irmã Dulce manteve uma relação cordial, ainda que dúbia. Vizinhos na infância e tratando-se pelo primeiro nome, o político atendia aos pedidos da freira, mas ela negava-se a oferecer seu apoio partidário.

“Meu partido é a pobreza”, costumava dizer. Não obstante, enquanto os governos de ACM eram criticados pela população local pela truculência policial ou pela falta de assistência social, a religiosa jamais teceu críticas públicas a ele.

“Eu nunca estive em posição de dizer não a ela. Não era possível porque ela chegava com aquela doçura capaz de desarmar o coração mais duro. Muitas vezes ela me abraçou e acariciou com ternura e eu conhecia o interesse que ela tinha em ajudar aos pobres”, resumia ACM em 2000 sua relação com a freira.

Bem relacionada também com presidentes, Irmã Dulce recebeu, em 1979, a visita do general João Figueiredo (último ditador do regime militar brasileiro) que ajudou a financiar, através do Banco do Nordeste, a ampliação do hospital em 1983. A relação mais próxima deu-se, contudo, com José Sarney (MDB), cujo gabinete era de trânsito livre para a freira. Graciliano Rocha conta que ela era uma das pouquíssimas pessoas com o número do telefone vermelho que ficava na mesa de Sarney no Palácio do Planalto e que permitia acessá-lo diretamente sem passar por mediadores.

Sarney impulsionou a indicação de Irmã Dulce para o Nobel da Paz em 1988. Sua adoração a Irmã Dulce era tamanha que, em entrevista a Graciliano Rocha, Norberto Odebrecht disse que o ex-presidente disse-lhe ser incapaz de recusar um pedido dela.

“Aquela mulher é uma santa, Norberto. O que ela pedir eu dou”, afirmou Sarney, segundo relato do empreiteiro. Ao então presidente, Irmã Dulce concedeu a única homenagem que fez a um político, ao batizar uma ala do hospital com seu nome, em uma época na qual Sarney enfrentava uma grande impopularidade.

Legado

Para Rocha, a importância histórica, social e política de Irmã Dulce está diretamente relacionada ao contexto da época. “Salvador viveu uma explosão demográfica ao longo da vida dela. Quando ela nasceu, a cidade tinha 280 mil habitantes. Um ano antes de sua morte, a população era de 2,1 milhões. Como a Bahia se industrializou tardiamente, houve uma multiplicação demográfica com paralisia econômica, o que se refletiu no aumento do número de miseráveis pelas ruas da capital do estado”, explica.

O resultado mais vistoso desse fenômeno foi a Favela dos Alagados, que chegou a ter 100 mil habitantes em 1970. “Nesse aspecto, à medida em que os anos passaram e sua obra cresceu, ela foi tornando-se influente no cenário político e econômico da Bahia”.

O jornalista e biógrafo retrata Irmã Dulce como pioneira do sistema de seguridade social antes mesmo de que algo como o Sistema Único de Saúde (SUS), criado na Constituição de 1988, viesse a existir. De acordo com Rocha, a autoridade moral e o reconhecimento do trabalho realizado pela freira com a população pobre eram os fatores que lhe abriam as portas dos poderosos. Ainda hoje, todos os anos durante a tradicional Lavagem do Bonfim, prefeito e governador (e demais autoridades políticas que por lá estiverem) interrompem o cortejo à Colina Sagrada, que passa em frente à sede da Osid para uma visita às obras sociais da santa brasileira.

No imaginário católico, Irmã Dulce aparece ao lado de outra santa dos pobres, Madre Teresa de Calcutá. Eram religiosas da mesma geração e ambas tiveram um forte apostolado ligado ao atendimento aos mais pobres: enquanto Madre Teresa conquistou a fama de santa percorrendo as favelas de Calcutá, Irmã Dulce fazia o mesmo em Salvador.

“A diferença é o que cada uma fazia com os pobres que lhes passava pelo caminho”, diz Rocha. “Existe uma crítica à Madre Teresa de organizações médicas respeitadas, porque sua congregação optava por não ministrar analgésicos fortes para controlar as dores de pacientes terminais. Ela estava mais preocupada com a salvação espiritual das pessoas. Já para Irmã Dulce, o que prevalecia era o diagnóstico e o tratamento prescrito pelos médicos. Seu foco era a saúde do paciente e não seu espírito”.

Rocha conta que, em sua pesquisa, cruzou-se apenas com duas críticas feitas ao anjo bom da Bahia: uma por parte do movimento comunista, quando ela afastou-se do frei Hildebrando  Kruthaup no Círculo Operário para tocar suas próprias obras sociais; e outra por parte do clero, quando, entre 1965 e 1975, foi exclaustrada, sendo afastada da congregação das Irmãs Missionárias da Imaculada Conceição da Mãe de Deus em função das suas atividades sociais que não seguiam as regras rígidas impostas para as freiras.

Exclaustração é o abandono temporário da vida religiosa concedido pelo legítimo superior, com dispensa das obrigações incompatíveis com a nova situação. O superior religioso só pode conceder por três anos; a prorrogação desse prazo compete à Santa Sé ou, se se tratar de instituto diocesano, ao bispo local.

“Acho realmente que ela foi uma mulher, de uma maneira laica, por assim dizer, que antecipou em muitas décadas a chegada de mulheres em posições de liderança. O que era esperado das mulheres na época dela eram mulheres subalternas, tanto em casa e, principalmente, na Igreja”, resume o biógrafo.

Diário da Paraíba com El País

Sair da versão mobile