Denúncia anônima e intuição Policial não justifica busca pessoal, decide STJ
A prática da busca pessoal, conhecida no Brasil como baculejo ou enquadro, depende da existência de fundadas razões que possam ser concretamente aferidas e justificadas a partir de indícios. Denúncia anônima, intuição policial ou mesmo abordagens “de rotina” não são suficientes para autorizar a medida.
Com esse entendimento, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça deu provimento ao recurso em Habeas Corpus ajuizado para trancar a ação penal contra um homem que foi abordado pela polícia em Vitória da Conquista (BA) com a justificativa de que estava “em atitude suspeita”.
No caso, o homem pilotava sua moto com uma mochila às costas. Abordado por uma guarnição da Polícia Militar, foi flagrado com 50 porções de maconha e 72 de cocaína, além de uma balança digital. Foi preso e processado por tráfico de drogas.
Ao STJ, a defesa, feita pelo advogado Florisvaldo de Jesus Silva, do escritório AAC Advogados Associados, argumentou que a justificativa dada pelos policiais para a abordagem foi genérica e insuficiente, o que feriu os artigos 240, parágrafo 2º, e 244 do Código de Processo Penal.
As normas disciplinam as razões que justificam a busca pessoal contra cidadãos sem autorização judicial. É preciso “fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”.
Relator no STJ, o ministro Rogerio Schietti propôs uma interpretação segundo a qual esses dois fatores — fundada suspeita e posse de determinados objetos — devem aparecer juntos para justificar uma atitude tão invasiva como a de parar e revistar alguém em via pública.
Essa é a maneira de evitar que a busca pessoal se converta em salvo-conduto para que PMs façam abordagens exploratórias e aleatórias, na prática conhecida como pesca probatória (fishing expedition).
“O artigo 244 do CPP não autoriza buscas pessoais praticadas como ‘rotina’ ou ‘praxe’ do policiamento ostensivo, com finalidade preventiva e motivação exploratória, mas apenas buscas pessoais com finalidade probatória e motivação correlata”, afirmou o relator no voto.
Por unanimidade de votos, a 6ª Turma entendeu que essa motivação idônea não existiu no caso do réu, que apenas trafegava de moto até ser parado pela polícia.
Standard probatório
A ideia da 6ª Turma é, mais uma vez, impor às autoridades policiais um padrão de conduta que esvazie a prática de pequenas violações de direitos fundamentais que, por um motivo ou outro, acabaram sendo toleradas pelo Poder Judiciário nas últimas décadas.
Para o ministro Schietti, a fundada suspeita que autoriza a busca pessoal deve ser baseada em um juízo de probabilidade, descrita com a maior precisão possível, aferida de modo objetivo e devidamente justificada pelos indícios e pelas circunstâncias do caso concreto.
Assim, não é suficiente a existência de denúncia anônima ou intuição policial — impressões que sejam subjetivas, intangíveis e não demonstráveis de maneira clara e concreta.
“Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de ‘fundada suspeita’ exigido pelo artigo 244 do CPP”, afirmou o ministro.
Além disso, a descoberta de objetos ilícitos durante a abordagem também não basta para validar a fundada suspeita anterior.
“Se não havia fundada suspeita de que a pessoa estava na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, não há como se admitir que a mera descoberta casual de situação de flagrância, posterior à revista do indivíduo, justifique a medida”.
A violação dessas regras deve resultar na ilicitude das provas, inclusive sem prejuízo de eventual responsabilização penal dos policiais que tenham realizado a diligência.
Praxe policial
O precedente é incisivo, como tem sido a praxe na 6ª Turma, mas não inédito. Há julgado recente em que o colegiado absolveu homem revistado por policiais militares porque demonstrou nervosismo excessivo ou porque guardas municipais viram três pessoas suspeitas dentro de um carro.
O voto do ministro Schietti ataca ainda o uso do baculejo ou enquadro como praxe das polícias, uma conduta que se volta contra as populações vulneráveis. “Geralmente são pessoas da periferia, mal vestidas, em locais de risco ou até onde há certa criminalidade, mas que nem por isso perdem a titularidade de direitos protegidos pela Constituição”.
O componente racial do trabalho policial também não é tema estranho às análises da 6ª Turma. Segundo o relator, exigir um melhor stardard probatório das polícias tem como um dos efeitos justamente evitar práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilamento racial.
Além disso, garante a sindicabilidade da abordagem e seu controle posterior e evita a restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e à liberdade.
“Vamos ter de aprofundar essa reflexão”, destacou o ministro Antonio Saldanha Palheiro, ao acompanhar o voto do relator. “Não podemos inibir totalmente a vistoria pessoal de uma pessoa que esteja suspeita. Mas o que é uma pessoa suspeita? Tem razão o relator ao dizer que normalmente é o estereótipo que conhecemos. Vamos ter de aprofundar, até para que quem executa as operações policiais possa ter um balizamento”.
No voto, o ministro Schietti traz dados de pesquisas sobre abordagem policial, audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal e usa o Direito Comparado para trazer a situação vivenciada em por outros países sobre o mesmo tema.
“O que se percebe, portanto, é que, a pretexto de transmitir uma sensação de segurança à população, as agências policiais — em verdadeiros ‘tribunais de rua’ — cotidianamente constrangem os famigerados ‘elementos suspeitos’ com base em preconceitos estruturais, restringem indevidamente seus direitos fundamentais, deixam-lhe graves marcas e, com isso, ainda prejudicam a imagem da instituição e aumentam a desconfiança da coletividade sobre ela”, afirmou o magistrado.
Mudança de conduta
O ministro Schietti defende nesse julgamento e em outros que ao Poder Judiciário está reservado um papel decisivo na mudança de cultura das agências estatais que compõem o sistema de Justiça Criminal.
O acórdão sobre os requisitos para busca pessoal segue a linha do que a 6ª Turma decidiu ao fixar que o policial que invadir uma residência sem mandado judicial deverá filmar a autorização do morador. O tema da invasão de domicílio sem autorização judicial tem gerado inúmeros Habeas Corpus, como tem mostrado a ConJur.
Da mesma forma, a 6ª Turma vetou condenações baseadas exclusivamente em reconhecimento por foto e chegou a proibir a fixação de regime fechado aos pequenos traficantes — decisão que foi derrubada por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal.
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RHC 158.580.
Conjur