Hoje, vilã de ‘Fina Estampa’ seria cancelada
A novela Fina Estampa foi exibida originalmente lá se vão nove anos, mas tem garantido bons índices de audiência ao horário nobre da Globo graças à sua notável sintonia com o Brasil de hoje. O sucesso advém da trama leve costurada por Aguinaldo Silva e de seus temas prosaicos do cotidiano – que ainda podem ser facilmente confundidos com a realidade de muitos brasileiros. Pereirão, a protagonista de fibra vivida por Lilia Cabral, continua a refletir a dura rotina de um grande contingente de mulheres que são chefes de família. E o mordomo Crô, imortalizado com as caras e bocas de Marcello Serrado, ainda diverte espectadores de qualquer orientação sexual. Nesse caldeirão de elementos bem-sucedidos, somente um item parece deslocado do mundo e do país da atualidade: a impagável Teresa Cristina, vilã dondoca e sociopata interpretada com verve esnobe por Christiane Torloni.
O que chama atenção na renovada notoriedade de Teresa Cristina é sua absoluta inadequação aos manuais da correção política de 2020. Vilãs de novela, vale frisar, são personagens fascinantes e muito populares justamente por que têm a função de movimentar a novela com sua amoralidade desgovernada. Elas têm licença para falar e fazer as maiores atrocidades – até porque existe a certeza de que serão punidas no final. O caso supremo desse tipo de personalidade torta é Nazaré, a megera de Senhora do Destino (aliás, do mesmo Aguinaldo Silva). A personagem de Renata Sorrah desferia xingamentos preconceituosos contra os filhos de sua rival nordestina e até encarava sessões de sexo grupal sado-masô. Mesmo assim, não era rejeitada pelo espectador – muito pelo contrário.
Teresa Cristina filia-se, com brio, a essa estirpe de tipos femininos amorais – não à toa, ela e Nazaré são campeãs de memes e figurinhas. Mas é curioso que uma personagem de um passado tão recente – 2011, afinal, foi ontem mesmo – seja agora apreciada quase como relíquia de um tempo que passou na TV. É possível que o último vilão tão incorreto das novelas das 9 tenha sido Félix, o espalhafatoso personagem de Mateus Solano em Amor à Vida, escrita por Walcyr Carrasco em 2013.
Numa novela atual, a incorreção de Teresa Cristina mexeria com muitas suscetibilidades – pense no rebu que ela causaria em uma novela “muito humana” como a recém-interrompida Amor de Mãe, com toda pregação sobre racismo, direitos da mulher e problemas sociais da trama de Manuela Dias. A perua de Christiane Torloni já chamou seu fiel escudeiro e mordomo Crô (Marcelo Serrado) de “bicha”, “viado”, “afeminado”, entre outros termos que jamais seriam aceitos nos dias de hoje pelos grupos LGBT. A empregada da ricaça, Marilda (Kátia Moraes), coitada, já foi classificada de “imprestável”, “múmia”, além de ser maltratada diversas vezes. Sem contar os inúmeros insultos contra Griselda (Lilia Cabral), a Pereirão, que é chamada regularmente de “mulher de bigode”, “mulher macho”, “fedida” e “pobre”.
Teresa Cristina ainda faz sucesso com o público, mas é difícil mensurar quanto dessa tolerância se deve ao conforto de saber que se está rindo de uma vilã “à moda antiga”. Para os autores e a Globo, certamente seria uma dor de cabeça apostar numa personagem assim nas circunstâncias de hoje. “A patrulha ia cair em cima, possivelmente teríamos muitos protestos de ONGs, associações etc. e etc.”, diz um executivo da emissora. É verdade que a recente Amor de Mãe só esboçou uma decolagem quando a personagem de Adriana Esteves começou a se converter numa megera à la Carminha – mas isso só foi possível porque era uma vilã “com causa”, que enfrentou frustrações com a maternidade.
Diário da Paraíba com Veja