Longevidade da pandemia pode isolar o Brasil do resto do mundo, diz infectologista

SÃO PAULO — O epidemiologista Roberto Focaccia, professor livre docente pela Universidade de São Paulo, afirma que o país corre grande risco ao ter flexibilizado o isolamento antes de reduzir a transmissão do coronavírus.

Segundo ele, quanto mais pessoas se contaminam, numericamente falando, mais o coronavírus tende a se adaptar ao novo hospedeiro. Isso significa que a Covid-19 pode se perpetuar no país por muito mais tempo, isolando o Brasil do resto do mundo. O professor diz que a única saída, diante dos erros já cometidos, é a vacina. Mas ele também dá uma boa noticia: a segunda onda de infecção nunca é pior. O problema é que ainda não saímos da primeira.

O Brasil já ultrapassa 800 mil infectados. Qual o risco para os países com maior número de casos?

— O homem ainda não é hospedeiro do coronavírus. É um hospedeiro eventual. Os coronavírus se dão bem com os animais, mamíferos, onde conseguem infectar e se reproduzir. Quando acomete o homem, o vírus sofre mutações para contornar a resposta imunológica do corpo humano. Ou eles se adaptam e tornam o homem um hospedeiro definitivo ou não consegue e termina a epidemia. Quanto mais casos, como no Brasil, maior risco de perpetuação do coronavírus. Não tenho dúvida de que esse vírus veio para ficar.

Muitos estados iniciaram flexibilização da quarentena. Como o senhor avalia?

— É preciso explicar primeiro quais as medidas de contenção que a humanidade utilizou para fazer frente à epidemia. Havia a proposição de permitir que o vírus avançasse e 70% da população se imunizasse sozinha, a proposta do nosso presidente. O sistema de saúde se transformaria num caos, muito mais gente morreria. Na Suécia, um país muito menor, com população mais disciplinada e de nível educacional mais elevado, a quarentena voluntária resultou em tragédia e tiveram de fazer lockdown.

Outro modelo foi a quarentena obrigatória, adotada pela China, que fechou toda a cidade de Wuhan e ninguém podia sair de casa. Foi mais fácil fazer pelo tipo de regime, autoritário. Mas ao mesmo tempo testaram toda a população, detectaram quem eram os positivos e, por celular, avisaram as pessoas que entraram em contato para que fizessem auto quarentena. Também implementaram distanciamento físico de 2 metros nos serviços essenciais. A China, assim como outros países asiáticos que adotaram medidas semelhantes, acabou logo com a pandemia.

Os países europeus adotaram outras táticas, mas também não estabeleceram o lockdown no início da curva, que é quando acontece o primeiro contágio local, comunitário. O número de casos e mortes explodiu e eles fecharam os países. Conseguiram conter a epidemia em 60 dias. Nos Estados Unidos, apesar do lockdown, isso não aconteceu, porque as periferias, que vivem em cubículos ou favelas de Nova York e Los Angeles, não conseguiram se isolar. O Brasil não se fez uma coisa, nem outra. Não fez quarentena direito, distanciamento físico e não teve testes, o que é uma enorme falha governamental.

A quarentena virou briga política porque o presidente ficou chateado com a decisão do STF, que colocou a decisão nas mãos de governadores e prefeitos.

De maneira primitiva e infantil, passou a dar demonstração a seus adeptos para não fazer a quarentena. Além disso, o Brasil tem uma enorme desigualdade, com grande parte da população sem condições de fazer isolamento, sem suporte econômico e social. Por fim, veio a pressão dos adeptos do presidente e do comércio pela reabertura das lojas, por questões econômicas.

Os estados também falharam..

— Já são mais de três meses de infecção no Brasil e, no auge da epidemia, os governadores abriram tudo, até os shoppings, por causa do Dia dos Namorados. Anteciparam feriados, liberando as pessoas para viajar. As decisões políticas estão prejudicando o Brasil. Uma hora falam em lockdown, outra abrem tudo. São atitudes políticas, não científicas.

O Brasil pode se tornar um risco para o resto do mundo?

— A Europa e os Estados Unidos já fecharam as fronteiras para o Brasil. Até o Donald Trump, que é amigo do presidente Jair Bolsonaro, fez isso. Se perpetuar a infecção pelo coronavírus, vamos ficar isolados. Quanto mais tempo, mais isolado do resto do mundo e pior para a economia. Esse tempo pode ser longo. Um estudo feito por uma universidade do Rio Grande do Sul mostrou que apenas 2% da população está com anticorpos. Vai demorar para chegar a 70%. Isso é tão óbvio, mas a briga e as decisões políticas não cessam. Estamos no pior momento para flexibilizar a quarentena. Daqui duas ou três semanas, vamos sentir o caos. Estamos brincando com a epidemia. É uma sucessão de erros inacreditáveis.

A segunda onda de infecção é preocupante?

— A nossa é ainda a primeira onda. Não devemos nos preocupar com a segunda porque ainda não terminamos a primeira. Mas a segunda onda nunca é pior. As pessoas já não estão mais tão suscetíveis.

Qual seria o melhor critério para liberar a quarentena?

— A liberação, como está sendo feita, é uma aventura. Estão usando como critério a oferta de leitos em UTI. Do ponto de vista epidemiológico, o fundamental é a taxa de contaminação, o RO, que é a capacidade de o portador transmitir para mais de uma pessoa. Na China, quando liberaram ataxa era de 0,3. Na Alemanha, de 0,7. Era preciso ficar pelo menos de um para um. Aqui estamos ainda entre três e quatro. É extremamente preocupante. Deveríamos ter feito lockdown desde o inicio da infecção comunitária e a abertura total seria uma catástrofe. Iria morrer muito mais gente.

Qual a característica desse vírus em relação ao clima?

— A temperatura ideal para este tipo de vírus é de 20 a 25 graus, com umidade acima de 45%. No Norte do país a temperatura é mais levada, mas cidades como Manaus e Belém são extremamente úmidas. Quanto mais úmido, mais o vírus gosta. Em São Paulo temos clima um pouco mais temperado e estamos tendo sol. O sol mata o vírus pelos raios ultravioleta.

Isso reduz a transmissão no ambiente?

— A transmissão ambiental é menos importante. Um estudo publicado nesta sexta-feira pela revista Science mostra que o risco de transmissão por superfícies contaminadas, como maçanetas e corrimão, por exemplo, é de 6%. A grande via de transmissão, além das vias respiratórias, é a proximidade física com indivíduos infectados. O risco é de 46% nos contatos com pré-sintomáticos, que estão infectados e ainda não tiveram sintomas e de 38% com os indivíduos já sintomáticos. Ou seja, é na fase inicial da doença que se transmite mais. No caso dos que têm o vírus mas não tem sintomas, o risco é de 10%. Por isso, o distanciamento físico e o uso de máscara é fundamental.

O vírus pode, com as mutações, se tornar menos ou mais agressivo?

— Pode, mas não sabemos. No Brasil não há estudos persistentes. No exterior, nos países que já venceram a primeira onda da epidemia, as mutações não são preocupantes.

Como o senhor vê o anúncio da vacina num convênio do Instituto Butantan com a empresa chinesa Sinovac?

— Existem mais de 100 testes de vacina contra o coronavírus em andamento no mundo. Dois deles, o da Oxford e essa do convênio com o Instituto Butantan estão na fase mais adiantada,a 3. Na fase 1, as pessoas recebem a vacina para testar se têm efeito colateral. Em geral, são pessoas pagas para o teste. Na fase 2, o teste é feito num número maior de pessoas, todas voluntárias, para que se possa saber o percentual de anticorpos formado a partir da vacina. Se esse percentual for adequado, é feita a fase 3.

Normalmente, demora meses, às vezes anos, para entrar na fase 3. mas diante de uma catástrofe como a que está ocorrendo no mundo, é permissível fazer o que está sendo feito. Diante da situação de emergência, a comissão de ética europeia e a agência de saúde americana, a FDA, aceitaram antecipar. Nessa fase 3, que envolve um grande número de pessoas, é verificado o grau e o tempo de proteção. É um teste em larga escala, para ver como funciona na vida real.

Qual a vantagem para o Brasil testar em brasileiros?

— A parceria levanta a possibilidade de o Brasil ter alguma prioridade quando ela estiver pronta. Serão necessárias 7 bilhões de vacinas no mundo e não sabemos a capacidade industrial de produção.

Supõe-se que os países envolvidos nas pesquisas tenham prioridade para receber. Antigamente testes eram feitos em países de Terceiro Mundo. Isso ainda ocorre?

— Não existe mais essa visão. Os órgãos de controle são muito mais rigorosos e é preciso que os testes sejam feitos em vários países, com critério de escolha, para que sejam observadas as características das populações. O Brasil é escolhido porque estamos vivendo uma epidemia gigantesca e os voluntários estão sendo recrutados principalmente na área de saúde. São médicos, enfermeiras, pessoas que trabalham em hospitais, de forma geral, e em casas de repouso, onde elas estão em contato direto com portadores do vírus. Nesses casos, a avaliação do grau de proteção da vacina é mais rápida e confiável.

O coronavírus abriu uma exceção na Ciência?

— É como uma guerra. Mata muita gente, mas se aprende também muita coisa. É isso que está acontecendo com essa epidemia. Métodos são aperfeiçoados e há avanços nos estudos de epidemiologia, sorologia, por exemplo.

Há muitas diferenças entre as vacinas?

— Algumas estimulam a imunidade humoral, produzindo mais anticorpos no sangue circulante, e outras estimulam a imunidade celular. As duas são igualmente eficazes. O importante é avaliar se de fato protegem e por quanto tempo. Algumas vacinas são tomadas uma única vez na vida. Outras, como a antitetânica, a cada 10 anos. A da Influenza, por exemplo, é anual. Há ainda vacinas de prazo mais curto, como a da febre tifoide, reservadas apenas para casos onde há micro epidemias. No caso do coronavírus, a de Oxford utiliza o vírus inteiro, inativado ou atenuado. A da Sinovac usa uma proteína presente no vírus. A proteção ainda está em estudos.

G1