Pandemia de Covid-19 na PB completa dois anos, e médico relembra etapas: ‘Experiência profissional mais desafiadora’

Uma doença devastadora. E, no princípio de tudo, ainda pouco conhecida, envolta de mistérios, cujos protocolos de contenção eram criados e aprimorados em meio à batalha que se travava contra ela e enquanto as internações e as mortes iam se somando, num cenário que mais se parecia a uma guerra. Na Paraíba, ao menos oficialmente, tudo começou em 18 de março de 2020, exatos dois anos atrás, quando o primeiro caso de Covid-19 foi confirmado no estado. Era o início de uma realidade que jamais havia sido testemunhada pelos profissionais que foram para a linha de frente, por mais experientes que pudessem ser. E que modificou para sempre a vida de praticamente todos os paraibanos.

Todo esse resumo sobre a pandemia foi retirado de uma entrevista com o médico sanitarista e ex-secretário executivo de Saúde do Governo da Paraíba, Daniel Beltrammi (atualmente ocupando o cargo de diretor-superintendente da PBSaúde), uma das pessoas que estiveram desde os primeiros momentos no combate ao coronavírus no estado e que aceitou conversar um pouco sobre os desafios e os aprendizados que se somaram nesses últimos dois anos.

“Qualquer profissional de saúde, em especial aqueles que estavam na linha de frente no período mais difícil da pandemia, vai relatar que foi a experiência profissional mais desafiadora de sua vida. Nem em nossos piores pesadelos pensamos enfrentar uma doença tão implacável como essa”, declara Beltrammi.

A propósito, a ênfase no “oficialmente” para se referir ao início da pandemia na Paraíba se justifica porque, na realidade, desde dezembro de 2019, e mais intensamente em janeiro de 2020, as autoridades públicas de saúde já anteviam que a doença chegaria ao estado. Beltrammi relembra que rondava em muitos uma certa incredulidade, uma impressão de que “isso não vai acontecer com a gente”, mas que, bem antes do primeiro caso, a Secretaria de Estado da Saúde (SES) já se preparava para o pior.

“A primeira reunião entre o governador e a equipe de saúde aconteceu em dezembro de 2019. Ali já antevíamos que o Brasil ia passar por momentos difíceis. Em janeiro, a gente já tinha iniciado um plano de contingência e isso nos ajudou a amadurecer com muita antecedência o que iríamos fazer e como fazer quando a pandemia chegasse à Paraíba”, relembra.

Ainda assim, a real dimensão da tragédia que estava por vir, ainda de acordo com o médico sanitarista, aconteceu quando a doença enfim chegou na Europa, mais precisamente à Itália. “O sistema de saúde da Itália sucumbiu em apenas duas semanas. Aquela era a prova cabal de que a doença chegaria ao Brasil com intensidade”, completa.

De fato, as previsões se demonstrariam corretas. Dois anos depois, já são 590.042 pessoas infectadas e 10.166 pessoas mortas na Paraíba por causa da Covid-19. Em todo o Brasil, já são 29.525.683 casos e 656.487 mortes.

O século 20, enfim, acabou

O médico sanitarista Daniel Beltrammi, ao refletir sobre esses últimos dois anos, pondera que a pandemia de Covid-19 marca, com duas décadas de atraso, o fim do século 20, período marcado por um capitalismo global mais individualista, em que as pessoas estavam mais preocupadas consigo mesmas.

E isso porque, ainda de acordo com ele, a Covid-19 não é uma doença do indivíduo, mas acima de tudo “um problema coletivo que afeta indivíduos”.

Não é um mero jogo de palavras. Segundo o ex-secretário, o bem-estar da população numa época pandêmica como esta depende de escolhas que afetam coletivamente a todos.

“A pandemia coloca as pessoas, a humanidade, em xeque. E a lição que fica é a do coletivo”, adverte Daniel Beltrammi.

Ainda assim, ele admite que é uma lição de “difícil aprendizado”, visto que, dois anos depois, as pessoas começam a se incomodar com coisas pequenas. Como exemplo, cita a resistência crescente ao uso da máscara, mesmo esse sendo “um dos atos mais poderosos no combate à pandemia”.

De toda forma, não restam dúvidas para Beltrammi, algo foi aprendido em todo esse período de desafios. “Quando a gente entende que o bem-estar coletivo vai ajudar o nosso bem-estar individual, isso é bom. Mas é um aprendizado de muito custo”.

Ademais, ele destaca a mudança de percepção que a população brasileira teve com relação ao Sistema Único de Saúde (SUS) nos últimos tempos. Atacada por muitos antes da pandemia, passou a ser quase um consenso coletivo justamente porque as pessoas passaram a entender melhor a importância do serviço na vida da população.

Para o profissional de saúde, aliás, a situação teria sido muito diferente, absurdamente mais grave, se o Sistema não existisse:

“O SUS é a empreitada humana mais ousada do mundo. Porque existe para oferecer atendimento universal de saúde para mais de 200 milhões de pessoas”, exalta Beltrammi. “Se não fosse o SUS, o estado de barbárie seria muito mais grave, a mortalidade seria muito maior”, completa.

Ele relembra que nos momentos mais difíceis de pandemia muitos hospitais particulares fecharam as portas para novos pacientes porque já estavam lotados, mas que isso simplesmente não podia acontecer no SUS.

“Para o SUS não há limites. A gente se expande, dá um jeito para atender todo mundo”, compara.

Para exemplificar isso, Daniel Beltrammi relembra que o Governo da Paraíba chegou a montar do zero um hospital de campanha com 130 leitos, além de inaugurar dois novos hospitais. Tudo isso para garantir que todos os acometidos pela doença pudessem ser atendidos com dignidade. “Exigiu-se um movimento de engenharia, de gestão, de formação de pessoal jamais vistos”.

Hospital de Campanha foi construído do zero para atender a população paraibana — Foto: Divulgação/Secom-PB

Hospital de Campanha foi construído do zero para atender a população paraibana — Foto: Divulgação/Secom-PB

Outro ponto lembrado por ele é o da exaustão dos profissionais de saúde, que passaram a lidar com mais pacientes de uma única vez, em estado grave e por períodos cada vez mais prolongados. “Foi um cenário completamente diferente de tudo o que se ensina nos bancos de escolas de saúde”.

Uma tragédia que também é de ordem pessoal

Daniel Beltrammi é paulista. Convidado para integrar o Governo da Paraíba para ajudar a implantar um novo modelo de gestão nos hospitais públicos estaduais, desembarcou em João Pessoa em 4 de setembro de 2019. Não imaginava ele que estava a seis meses do maior desafio de sua vida.

Para além de todos os esforços para ajudar no combate à pandemia em território paraibano, portanto, ele comenta que, tal como todos os outros brasileiros, também viveu sua dose de sofrimento extremo.

“A minha situação era muito peculiar. Eu não nasci na Paraíba. Vim de São Paulo pouco tempo antes da pandemia chegar. Fiquei 17 meses distante de minha família, por causa dos riscos de visitá-los e porque eu não tinha condições de sair da linha de frente”, revela.

Para ele, foi um período de extremo aprendizado e autoconhecimento:

“É a uma tragédia humanitária que nos leva à reflexão. A gente muda o entendimento sobre o limite do sofrimento que temos condições de aguentar”, filosofa Beltrammi.

 

Daniel Beltrammi viveu drama pessoal ao passar 17 meses longe da família — Foto: SES/Divulgação

Daniel Beltrammi viveu drama pessoal ao passar 17 meses longe da família — Foto: SES/Divulgação

O médico destaca que o seu pai e sua mãe pegaram Covid-19. E alguns tios e tias acabaram morrendo por causa da doença. Em todos esses casos, ele acompanhou tudo à distância, incapaz de viajar a São Paulo. “Eu passei pelas mesmas situações que todo mundo. Os medos, as inseguranças. Mas só desse jeito você tem a noção sobre o que significa a pandemia”.

O pior já passou, mas a pandemia ainda não acabou

A pandemia não acabou. E nem está perto de acabar. Para Daniel Beltrammi, é muito perigoso achar que o ciclo pandêmico vai se encerrar em menos de cinco anos, de forma que, na opinião dele, ao menos até 2024 não dá para baixar totalmente a guarda. Isso não significa, contudo, que a “situação de emergência” vá persistir ao longo de todo esse período.

A solução, segundo o gestor, é a sociedade rever uma série de questões para que, assim, consiga conviver com o vírus por mais alguns anos.

“É preciso pensar uma nova agenda que vai mexer com tudo”, explica, se referindo a formas de evitar aglomerações desnecessárias sempre que possível.

Ainda assim, ele admite que o pior já passou. Mesmo que, insista, não se trate de uma “esperança definitiva”.

“O momento da virada foi a vacinação, mas não o início da vacinação em 18 de janeiro de 2021”, comenta, relembrando que, curiosamente, foi justamente nos primeiros meses de trabalho de imunização que a Paraíba viveu um de seus piores momentos da pandemia em número de casos positivos e de mortes.

Quando 30% da população paraibana se vacinou, a situação começou a mudar para melhor — Foto: Phelipe Caldas/G1

Quando 30% da população paraibana se vacinou, a situação começou a mudar para melhor — Foto: Phelipe Caldas/G1

Isso se explicaria porque apenas no 15º dia depois da segunda dose da vacina é que a imunização se tornava mais efetiva. Algo que, obviamente, demorou um tempo. “As vantagens acumuladas da vacinação não começam quando se pica o braço”, frisa.

A mudança, portanto, aconteceu em meados de junho de 2021. “Uma vez que a gente atingiu a marca de 30% da população imunizada, o perfil do doente começou a mudar. Ali foi uma primeira esperança. Ali foi o momento que a gente percebeu que poderia virar o jogo”.

Essa demora entre o início da vacinação e a mudança do perfil dos enfermos, contudo, só colaborou com uma “guerra comunicacional” que, segundo o ex-secretário, foi regra ao longo de todo o combate à pandemia.

Desinformações dolosas ou acidentais, muitas vezes iniciadas e patrocinadas pelo próprio presidente da República, Jair Bolsonaro (PL), que apenas ajudou a tornar o enfrentamento da doença mais difícil.

“A pandemia foi também uma batalha de ordem comunicacional. Nós concedemos mais de sete mil entrevistas em dois anos. Não porque queríamos mídia, mas porque era importante fazer um contraponto, não confundir a população. Como autoridades sanitárias, cumprimos o nosso papel. Mantivemos o diálogo com as diferentes esferas de poder, respeitamos o Pacto Federativo, mas fizemos um contraponto frontal, de cara limpa, para apresentar o que a ciência dizia sobre a melhor forma de salvar vidas”, conclui o médico.

G1/PB