Sonho desmorona: contratado para trabalhar com jogador, brasileiro está preso na Rússia

A bola é o sonho de vida de nove entre dez jovens brasileiros. Raríssimos são os que chegam ao futebol profissional. Mais raros ainda os que fazem fortuna. Esses casos especiais proporcionam vida confortável para suas famílias e muitas outras ao redor. Esta reportagem conta uma história diferente.

A trama envolve um homem humilde da Baixada Fluminense que recebe uma proposta para trabalhar em Moscou a serviço de um jogador com passagem pela Seleção.

O sonho de mudar de vida desmoronou. Hoje, o homem que saiu de Nova Iguaçu está preso na gelada cidade de Kashira, a 110 quilômetros de Moscou.

Personagens principais:

  • Fernando – volante revelado pelo Grêmio, estava no Spartak Moscou até julho deste ano, quando se transferiu para o Beijing Guoan
  • Raphaela Rivoredo – esposa de Fernando
  • Sibele Rivoredo – sogra de Fernando
  • William Pereira de Faria – sogro de Fernando
  • Simone Barros – cozinheira convidada por Sibele para trabalhar na casa de Fernando e Raphaela na Rússia
  • Robson Oliveira – marido de Simone, recebeu proposta para ir a Moscou com a mulher e trabalhar como motorista e funcionário de Fernando e Raphaela
  • William Rodela – espécie de funcionário de Fernando na Rússia, ficou encarregado de buscar Simone e Robson no aeroporto em Moscou

O personagem central dessa história é o volante Fernando, de 27 anos. Cria do Grêmio, foi convocado para todas as seleções de base e esteve no grupo da equipe principal que conquistou a Copa das Confederações de 2013 no Maracanã. O jovem cuja carreira decolava foi logo seduzido pelos dólares do então emergente mercado ucraniano, que desembolsou R$ 36 milhões para levá-lo.

Campeão pelo Shakhtar Donetsk, depois jogou na Sampdoria, da Itália, até ser vendido, em 2016, para o maior clube da Rússia, o Spartak Moscou.

Mesmo longe dos holofotes e, naturalmente, das listas da Seleção, o jogador angariou respeito na Rússia e virou ídolo da fanática torcida do Spartak.

Fernando faz parte dessa lista de casos raros de meninos que desejam ganhar a vida jogando bola e conseguem chegar lá. E foi na esteira desse sucesso que outro personagem começou a sonhar.

Robson do Nascimento Oliveira, 46 anos, ex-fuzileiro naval, desempregado, vivia na conta do chá em Nova Iguaçu ao lado da mulher a quem se uniu cinco anos atrás. Cozinheira de mão cheia, Simone Damazio de Barros foi quem abriu a janela de um futuro melhor para o casal, no fim do ano passado. Indicada por uma amiga, ela recebeu uma mensagem em seu WhatsApp no dia 29 de novembro de 2018.

“Eu quero muito que você vá trabalhar com a minha filha fora do Brasil. Por isso convenci a ela que você é uma boa opção para eles. Mas é inegável a necessidade de termos uma experiência antes, então pensei na tentativa de encontrar uma solução, e o que achei é que você poderia trabalhar quatro dias fixos, de quarta a sábado, e você terá três dias livres pra pegar suas diárias, e a outra cozinheira trabalha os outros três dias. Nas festas ela trabalha no Natal, porque você já tem uma ceia, e no Ano Novo você trabalha com a gente. O que você acha?”, enviou Sibele Rivoredo, sogra do jogador e espécie de governanta da família.

A cozinheira topou o desafio inicial, no Rio de Janeiro. Passou o último réveillon na cozinha da mansão do volante no Condomínio Del Lago, na Barra da Tijuca, preparando o banquete da festa da família do jogador.

A proposta de largar tudo no Brasil e seguir para a Rússia era assustadora – cultura e hábitos totalmente diferentes, distância, língua estranha e um país de inverno rigoroso -, mas ao mesmo tempo tentadora, em razão da proposta salarial de R$ 8 mil – praticamente sem gastos, já que teria teto e comida em Moscou.

Sibele, a sogra de Fernando, foi mais direta em outra mensagem para Simone.

“Acho também que você tem que pensar que se a gente quer buscar melhorias a gente tem que arriscar um pouco. E o que você tem certo hoje não é suficiente pra você viver, né?!Com base no que você me falou. Então, é uma oportunidade e você vai ter que fazer uma escolha, porque na vida a gente faz escolhas dos nossos caminhos e são apostas. Nesse caso nós estamos apostando em você e você em nós. Preciso da sua resposta hoje, porque não tenho mais tempo. Te aguardo. Obrigada”.

Somados, salários do casal chegariam a R$ 14 mil em Moscou

Em casa, Simone encontrava resistência: o marido não gostou muito da ideia de ficarem separados por tanto tempo. A cozinheira, então, fez a contraproposta: queria mais um emprego para Robson ir junto para a Rússia. Sibele aceitou. Negócio fechado. Ele trabalharia ajudando na casa e como motorista, recebendo mais R$ 6 mil. A soma dos salários do casal (R$ 14 mil mensais) fez os dois projetarem um futuro melhor.

– Sabíamos que não seria fácil, mas valia o sacrifício. Trabalhando um ano ali, construiríamos nossa casinha – diz a cozinheira.

O casal nunca tinha viajado de avião na vida. Não tinha passaporte, nada. O estafe de Fernando, então, deu início ao processo para levá-los a Moscou.

– Fomos fazer nosso passaporte em Niterói, porque sairia mais rápido. Eles pagaram e marcaram tudo – lembra Simone.

No dia 9 de fevereiro, Robson e Simone fizeram um registro fotográfico já dentro do avião, orgulhosos, rostos colados e sorrisos abertos. Era a decolagem em busca da melhoria de vida. Ou deveria ser. Minutos antes do embarque, porém, o motorista da família de Fernando, identificado como Leandro, chegou ao aeroporto Tom Jobim com três malas. Dentro delas havia encomendas da família do jogador.

“Quando chegar lá, vai ser (sic) duas malas grandes e uma de mão pro Robson num carrinho. Aí no outro carrinho você põe duas malas e sua bolsa (Simone e Robson levavam uma mala pessoal cada). Não passa três malas num carrinho não que chama atenção e eles vão parar. E duas malas é normal. Então você passa duas malas de um e duas de outro, tá?!”, disse Sibele num áudio de orientações para Simone.

Simone e Robson garantem desconhecer que, em meio às encomendas, havia remédios tarja preta que, no Brasil, só podem ser adquiridos com receita médica. E eles atravessaram o portão de embarque no Rio de Janeiro sem as receitas prescritas na bolsa.

Dezoito horas mais tarde, o voo da Lufthansa de número LH-1446 pousou no Aeroporto Internacional de Domodedovo, conhecido como o mais rigoroso de Moscou. Eram 17h46 do dia 10 de fevereiro quando o casal pegou as malas na esteira. Ansiosos, estavam tomados pelo frio na barriga para encontrar o “funcionário” de Fernando que iria buscá-los: William Rodela. Não deu tempo.

Nove minutos depois, no hall de saída para o saguão do aeroporto, Robson e Simone escolheram o corredor verde, quando não se tem nada a declarar. Foram parados pelo funcionário A.L. Elisov, agente operacional do Setor de Controle de Circulação de Drogas da Diretoria Linear do Ministério do Interior no aeroporto de Demodedovo, além do major K.S. Losev e do tenente-coronel N.V. Antipov.

Não havia muito o que temer, imaginavam, além do constrangimento e da dificuldade de comunicação, já que as orientações de Sibele eram claras. Em outro áudio, inclusive, ela fala de um possível questionamento sobre um par de alianças do casal Fernando e Raphaela que Simone carregava na bolsa de mão:

“Se eles pararem, as alianças são sua e do Robson. Vocês são casados, se não vai entender o que eles estão falando. Você mostra o seu dedo que é de vocês”, orientou.

O problema estava longe das alianças. Misturadas numa mala preta, em meio a comidas e roupas de criança, havia duas caixas do remédio Mytedom – cloridrato de metadona – 10mg, um potente comprimido para quem convive com dores, principalmente, mas também bastante utilizado no tratamento de recuperação de viciados em ópio e heroína. Daí o problema principal. Na Rússia, a substância é considerada entorpecente. E a quantidade, 40 comprimidos, com a massa de 5,60g de opioide, encaixava-se na nomenclatura da lei que prevê um “volume grande” da droga, infringindo o artigo 229.1, parte 3, do Código Penal da Federação da Rússia.

Bateu o desespero. Os dois se olhavam, tentavam a mímica, até verem William Rodela. Do portão de desembarque, ele avistou o casal negro – o único naquele voo que chegara de Frankfurt parado pela imigração russa. Estudante do terceiro ano de Medicina da Primeira Universidade Médica Estatal de Moscou I.M. Sechenov, William da Silva Sousa, o Rodela, havia se aproximado de Fernando na Rússia, onde uma comunidade de brasileiros se fala em grupos de WhatsApp.

Rodela fazia favores e, em troca, convivia no mundo das famílias dos boleiros, frequentando camarotes em jogos, bons restaurantes e festas. Um dos agentes da imigração russa viu Rodela e autorizou que ele entrasse para servir como tradutor do casal. Robson e Simone esperaram por horas e horas. Tiveram suas digitais coletadas, foram fotografados. Com Robson – que tinha seu nome na etiqueta da mala onde estavam os remédios ilegais – os exames foram além. Urina, sangue e cabelo.

Denúncia de tráfico internacional de substância ilícita

Na denúncia que o levaria aos tribunais, a Justiça russa descreveu: “Estando no território do Brasil (local e hora não determinados, mas o mais tardar em 10 de fevereiro de 2019) e tendo intenção criminosa de transporte ilícito de substâncias estupefacientes através da fronteira aduaneira da União Aduaneira da Comunidade Econômica Euroasiática, Robson do Nascimento Oliveira adquiriu de pessoa não identificada uma substância estupefaciente com objetivo de seu transporte em aeronave ao território da Federação da Rússia”.

Ou seja: para o Ministério Público local, Robson teve a intenção de preparar a mala com remédios escondidos a fim de cometer o tráfico internacional da substância ilícita. Assim, infringiu também o artigo 30, parte 1, da lei, e o artigo 228.1, parte 4, parágrafo d (preparação do tráfico de substâncias estupefacientes em volume grande).

Naquele momento, Simone estava desesperada. Mandava mensagens sem parar para sua patroa, que curtia férias em família na Grécia e na Itália. Em dois áudios obtidos pela TV Globo, Sibele diz: “Todos os remédios foram médicos mesmo que receitaram e tudo. São remédios que a gente realmente necessita. Então não tem nenhum problema com relação a isso aí. A gente não tá levando nada ilegal, não é nenhuma droga, ninguém é viciado em nada. Isso daí são remédios necessários mesmo”.

Em outro áudio, a sogra de Fernando admite que a medicação, legal e receitada, pertenceria a ela, ao marido William e à filha Raphaela Rivoredo, à época grávida do segundo filho do jogador. “Simone, na Rússia é um pouco complicado entrar as coisas realmente. Inclusive comida. Por isso falei para misturar no meio das roupas e tal. Os remédios não têm nada demais no Brasil. A questão é a quantidade, que foi muita, porque é muito tempo que eu tô, né? Então, por isso que deu esse problema. Mas eu encaminhei para o Rodela a receita. São remédios que realmente é receitado. E a maioria aí dessas caixinhas são minhas, mas tem da Raphaela, tem do William. Então… Mas é isso. Tá sendo resolvido!”, garantiu.

Foto de receita não ajuda Robson

A TV Globo ouviu especialistas que atuam na Rússia para entender se a quantidade de remédios havia sido determinante para o flagrante. A resposta é não. Qualquer opioide (como a metadona) é proibido no país.

No subúrbio de Moscou, a reportagem foi até o conjunto habitacional onde Rodela divide apartamento com dois colegas brasileiros. Ele não estava. Depois, por telefone, confirmou que Sibele, efetivamente, enviou por mensagem uma foto da receita.

Receita de William Faria enviada por mensagem de Sibele a William Rodela — Foto: ReproduçãoReceita de William Faria enviada por mensagem de Sibele a William Rodela — Foto: Reprodução

Receita de William Faria enviada por mensagem de Sibele a William Rodela — Foto: Reprodução

Globo Esporte