VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI; veja a crítica do filme
Ao menor sinal de instabilidade do sistema mercadológico, surgem diferentes tipos de discurso de responsabilização individual do “establishment” para a classe trabalhadora: “Seja seu próprio patrão”, “Vire mestre de seu destino” e outras idéias prontas. Discursos que oferecem uma ilusão de retomada do controle da própria vida. Milhões de pessoas ao redor do mundo sucumbem, então, a um ideal meritocrático e individualista. Uma mecânica social ardilosa, que impõe uma rotina estafante de privações individuais como preço de um hipotético sucesso profissional.
No longa Você Não Estava Aqui, do diretor britânico Ken Loach, o espírito da livre iniciativa ganha “status” de tábua de salvação em uma realidade brutal para famílias pobres. Após passar grande parte da vida entre trabalhos informais, o pai de família Ricky Turner (Kris Hitchen) compra uma van e começa a fazer entregas de mercadorias para uma empresa, enquanto sua esposa Abbie (Debbie Honeywood) trabalha como cuidadora de idosos para complementar a renda da família. Entretanto, o que se vê é o ruir do sonho de prosperidade da família, uma vez que o trabalho de ambos os impede de ter uma vida saudável.
Com uma abordagem explícita das conseqüências cruéis da “uberização” do trabalho, Ken Loach e o roteirista Paul Laverty investem, primordialmente, na conexão do público com os sofrimentos e as esperanças do núcleo familiar de Ricky.
Com o uso de planos seqüência e diálogos inicialmente longos, o espectador fica totalmente imerso nas mazelas de uma família que abre mão, involuntariamente, da individualidade para assegurar a sobrevivência. Com o passar do filme, as cenas de interação familiar sofrem cortes mais abruptos e freqüentes, e os diálogos, quando existem, servem como um “descarrego” das tensões laborais, e não como uma forma de comunicação entre pais e filhos. Enquanto isso, o ambiente de trabalho, os clientes e as figuras de chefia ocupam gradativamente todo o espaço que pertencia à família e à individualidade dos personagens. A intimidade da família se despedaça diante dos nossos olhos.
A luta do trabalhador comum pela vida sempre foi um tema caro a Loach em sua carreira como cineasta (como podemos observar em Eu, Daniel Blake, de 2016 e “Kes”, de 1969). Eficiente em adaptar suas narrativas ao panorama econômico-social de cada época, Loach abordou, em “Kes”, temas como o bullying, a pobreza na infância, a rigidez abusiva dos métodos de ensino e o preconceito contra a mulher . Já em Eu, Daniel Blake, 47 anos depois, acompanhamos a saga insana de um homem adoecido pela burocracia estatal ao buscar auxílio financeiro para viver.
Entretanto, Você Não Estava Aqui adota, como nenhum outro trabalho do diretor, um tom de pessimismo ao explorar e mostrar ao público as estruturas perversas de instituições públicas e privadas que dividem entre si o poder sobre a força de trabalho, logo, sobre vidas humanas.
Diário da Paraíba com Cineclick